Conexão SP: Volta pra tua terra!

Foto: Clive Wilson/Unsplash
*Por Mário Viana
Sei que tem guerra, massacre, bala perdida, seca, enchente, luz que não volta, o diabo a quatro. Mas o que mexeu bastante com meus baixos instintos foi o vídeo da portuguesa esbravejando contra uma turista brasileira, na cidade do Porto. “Volta pra tua terra!”, uivou a gaja. Foi como o gatilho de uma bazuca na minha direção. Na minha mesmo, a coisa foi pessoal.
Quem já escutou essa frase ao menos uma vez na vida não esquece. São quatro palavrinhas afiadíssimas, que cortam fundo. Dói na alma ouvi-las, principalmente se você está batalhando o seu na mais pura honestidade. Mesmo que não esteja, a frase não tem cabimento. Você está apenas peruando por um lugar onde não nasceu e aparece um descompensado te mandando retornar sei lá pra onde.
Numa das minhas encarnações, escutei “Volta pra tua casa!” em francês e em lusitano. A dublagem não alivia. A pessoa que ordena a distância está pouco se lixando pra sua história de vida. Ela quer te ver pelas costas. Julga-se superior. Quase dá dó tamanha falta de autocrítica.
Não é só entre nativos e estrangeiros que essa frase ressurge. Quantas vezes já não ouvimos quem defenda devolver os nordestinos aos seus Estados de origem? Recentemente, tivemos o caso de uma cidade do interior paulista que mandou a polícia escoltar um grupo de miseráveis até a divisa com o município vizinho. Aquele bando de pobre não ornava com a decoração da praça.
Juro que até penso em tentar entender o raciocínio da besta. O indivíduo nasce em São Paulo ou no Paraná e se sente com a posse intransferível do lugar. Dá vontade de olhar firme e falar: “Xuxuzinho, seu local de nascimento só interessa a quem faz seu mapa astral”. A coisa se torna ainda mais asquerosa porque quem fala não sente isso aqui de vergonha.
O que deu na cabeça da portuguesa pra soltar a cachorrada em cima da brasileira? Acordou do lado errado da cama? Sentiu-se ofendida por alguma frase da nossa conterrânea? A gente sabe que a classe média brazuquinha nem sempre tira 10 no curso de etiqueta, mas a irascível tripeira (é como chamam os que são do norte português), tal qual um Cristiano Ronaldo da grosseria, encaçapou três gols seguidos.
Quando a criatura se julga no direito de devolver o outro à própria terra está abrindo a porta pra qualquer reação. Não adianta fazer biquinho. No meu caso, a reação poderia ir do mudo espantado a um repertório de palavrões que faria Dercy Gonçalves pedir moderação.
A catifunda lusa talvez não tenha feito as contas e concluído que uma turista brasileira rende muito pros impostos locais. Compra bastante, come de fazer gosto e bebe de se afogar. Tudo isso é dinheiro que fica nos cofres portugueses. Se nem isso comove a indigitada, então o caso é perdido.
No fim das contas, foi mais um caso de ironia da história. Enquanto a turista brasileira se sentia agredida – com razão –, para um grupo de 34 brasileiros, espremido entre a Faixa de Gaza e a fronteira do Egito, escutar “Volta pra tua terra!” soaria como uma bênção dada por Deus em pessoa. Ou espírito santo, sei lá. A furiosa do Porto jogou pra torcida errada.
Os brasileiros de Gaza já entraram no Egito e puderam comer até maçã. A terra está à vista, moçada.
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Mário Viana é Dramaturgo, autor-roteirista de novelas, cronista, jornalista. Paulistano.
https://vianices.wordpress.com/
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