Contra a antecipação do fim da infância

Foto: timgraf99/Unsplash
*Por Ricardo Mituti
Ontem meu filho chegou da escola e eu perguntei a ele como havia sido seu dia. “Um tédio”, respondeu-me. “Por que um tédio?”, retruquei. “Porque ficamos sentados o tempo todo”. “Ora, e o que você queria fazer?” “Brincar, ué!”
Meu filho tem 11 anos e participou de uma iniciativa denominada Projeto Travessia. Trata-se de um dia em que os alunos do quinto ano do ensino fundamental vivenciam a rotina do sexto ano. O objetivo é aproximar as crianças da nova realidade que as aguarda.
Sim, porque as crianças atravessam uma espécie de portal quando passam do quinto para o sexto ano. Pelo menos na escola onde meu filho estuda, as duas professoras das disciplinas básicas se multiplicam por seis. Tipo gremlins. É o fim da infância. Assim, de um mês para o outro, a criança precisa deixar de ser uma criança “pequena” para se tornar, vejam que maravilha, uma pré-adolescente. Ela ganha um carimbo na testa e, espera-se, deve se tornar mais autônoma e responsável, para que não sofra na vida dura, competitiva e cruel que se avizinha. Até pode sair correndo desembestadamente pelo pátio, mas, convenhamos, esse já não é o tipo de comportamento esperado de alguém com 11 ou 12 anos. Seria melhor que permanecesse sentada lendo ou jogando charme para a(o) coleguinha pela qual nutre uma paixão ainda em segredo. Melhor ainda se permanecesse estudando – isso sim, o suprassumo da maturidade.
Não importa que eu diga que com a idade do meu filho, depois da escola, eu passava o dia na rua, correndo desembestadamente atrás de uma bola, em cima de um skate ou de uma bicicleta. Os tempos, hoje, são outros. Tempos de celular, redes sociais, digital influencers e dancinhas supereducativas no TikTok. O que você quer ser quando crescer, filho? Youtuber.
Meu filho tem 11 anos e queria poder brincar mais na escola. Só que na escola, aos 11, já não se pode mais brincar tanto quanto ele gostaria. É preciso começar a se acostumar com os seminários, as provas com enunciados de meia página – ou mais – e as de múltipla escolha que simulam os testes do vestibular que ele fará dentro de sete anos, se tudo correr bem.
E engana-se quem lê esta crônica com olhos de crítica aberta à escola onde meu filho estuda. Não mesmo. Lá, como ele costuma dizer, é a casa dele – e a nossa também. Eu mesmo passei por isso na escola onde estudei. Exatamente do mesmo jeito que ele, cerca de 35 anos atrás. O problema, como se vê, é o que estão fazendo com a infância nas últimas décadas.
(...) toda infância é mesmo idílica, um sonho esgarçado, faltando pedaços em toda parte, memórias em fragmentos, emoções intensas e desesperadas e satisfeitas e impetuosas de alminhas em formação desesperadamente em busca de prazer e de sentido, risadas, gritos, choros (...), escreve Cristovão Tezza no romance “Beatriz e o Poeta”.
Ah, mas a ciência estabelece que as fases da vida... desculpe-me, mas não me venha esse papo cartesiano. Que mal tem querer brincar aos 11 anos? Basta ver a singeleza da ideia das alminhas em formação desesperadamente em busca de prazer e de sentido, risadas, gritos. Se você não se sensibiliza com isso, é porque talvez tenha tido uma infância infeliz – ou tenha sido arrancado do pé antes do tempo, feito fruta verde.
Evidentemente, não quero que meu filho seja um zé-ninguém, um irresponsável, um bocó ou um adulto infantilizado. Mas tudo no seu tempo e na justa medida, sem queimar etapas.
O mesmo Cristovão Tezza, ao falar da fase que se segue à infância e à pré-adolescência, escreve, não sem sarcasmo, que (...) adolescentes são fantasmas, ninguém olha para eles, eles se definem pela ausência viva (...). Claro, há ironia e exagero aqui. Mas não se pode negar que também há alguma verdade nessa afirmativa.
E se é assim – e depois tudo acaba, dando espaço para as responsabilidades, os boletos, a pressão e todas as vicissitudes da vida adulta –, por que, então, antecipar o fim da infância? Deixem as crianças correrem desembestadamente, oras. Como se não houvesse amanhã. Porque, quando o amanhã chegar, aí sim será preciso muito mais do que só maturidade. Até o fim dos dias.
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Ricardo Mituti é jornalista, escritor e coordenador do Laboratório de Leitura. Atua como assessor de comunicação desde 2000. É coautor de O Brasil do Sol Nascente, autor de Histórias (Quase) Verídicas - adaptado para websérie - e Órfãos de São Paulo. É, ainda, idealizador e apresentador do talk show lítero-cultural Epígrafes, no ar na internet entre 2016 e 2018, criador da vivência lítero-humanística Viva Livros - Uma Experiência Literária e coapresentador do programa Leia a Bula. Também é palestrante, redator, roteirista, produtor, editor, ghost writer, narrador de audiolivros, mediador de debates, mestre de cerimônias e consultor para assuntos do mercado editorial e livreiro. É mestre em Ciências pela Escola Paulista de Medicina (UNIFESP), com pesquisa na área de Ciências Sociais e Humanas em Saúde, na linha "Humanidades, Narrativas e Humanização em Saúde"
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