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Cultura

Cristovão Tezza: “‘O Filho Eterno’ mudou minha vida”

Por: SIDNEY NICÉAS
Em uma entrevista exclusiva ao Tesão, Cristóvão Tezza fala sobre seus livros, literatura, e sobre a linguagem como ferramenta para construção de seres humanos melhores.

Foto: Reprodução/www.bpp.pr.gov.br/Arte Tesão Literário

15/11/2023
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*Por Ricardo Mituti

Um livro, uma dezena de prêmios – literalmente – no Brasil e no exterior, tradução para mais de uma dúzia de idiomas e adaptações para o teatro e o cinema. Esta seria uma boa síntese para definir “O Filho Eterno”, romance do escritor Cristovão Tezza lançado em 2007 e eleito pelo jornal O Globo, dois anos mais tarde, uma das dez melhores obras de ficção da primeira década do século XXI.

Ainda que viver da literatura no Brasil seja desafiador para a maioria esmagadora de escritores e escritoras, todo esse reconhecimento, claro, reverberou positivamente nos planos pessoais e profissionais do autor, natural de Lages (SC), mas radicado desde os nove anos em Curitiba (PR): “‘O Filho Eterno’ mudou minha vida”, admite Tezza. “Graças ao sucesso do romance, realizei plenamente o velho sonho de me demitir da universidade e mergulhar inteiramente na literatura.” 

Se a universidade perdeu um acadêmico, as letras ganharam um best seller.

Desde sua estreia na literatura, no final da década de 70, Cristovão Tezza é um dos poucos autores brasileiros que pode se orgulhar de já ter conquistado – com diferentes obras, registre-se – as mais destacadas premiações do meio: o Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras (ABL); o Prêmio Bravo! de Literatura; o da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA); o Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro (CBL) – inclusive, é semifinalista deste prêmio em 2023 –; o Portugal-Telecom (atual Oceanos) e o São Paulo de Literatura, do governo do Estado de São Paulo. 

Aliás, o Prêmio São Paulo de Literatura pode novamente ir parar em suas mãos neste ano. Isso porque seu livro mais recente, “Beatriz e o Poeta”, de 2022 (Todavia), é um dos finalistas da 16ª edição na categoria “Melhor Romance do Ano” (o resultado sai em 27 de novembro). “Passei a vida dizendo que era escritor – e ouvindo a pergunta: e na vida real, você faz o quê?”, relembra ele, em entrevista exclusiva ao Blog Tesão Literário, neste portal Ver Agora. Hoje, próximo de completar 45 anos de carreira, Tezza poderia tranquilamente responder: na vida real eu sou um acumulador. De prêmios literários.

Confira abaixo a íntegra da entrevista com Cristovão Tezza:

 

TESÃO LITERÁRIO: Até que ponto o êxito de “O Filho Eterno” exerceu – ou ainda exerce – algum tipo de influência ou pressão sobre sua produção literária?

CRISTÓVÃO TEZZA: Na minha escrita, nenhuma influência ou pressão. Entre outras razões, porque, para minha felicidade, ao publicar “O Filho Eterno” eu já estava com mais de 50 anos e uma dezena de livros publicados, e portanto maduro o suficiente para não me deixar afetar por uma borboleta voando. Meu livro seguinte foi o romance “Um Erro Emocional”, que de certa forma colocou minha linguagem numa outra direção. Eu acho engraçada a ideia de que um autor “escolheria” os livros que escreve ou a linguagem de seu texto, frequentando alguma prateleira de ofertas e estilos literários. Isso não existe. Observe: há sempre uma unidade brutal e intransferível na obra de qualquer escritor relevante, um DNA de que ele não consegue se livrar, mesmo que tente. A margem de escolha é sempre muito pequena. Mas se você perguntar da vida pessoal, aí sim, “O Filho Eterno” mudou minha vida: graças ao sucesso do romance, realizei plenamente o velho sonho de me demitir da universidade – meu projeto acadêmico já estava esgotado, mas por sobrevivência eu acabaria me arrastando nele até a aposentadoria – e mergulhar inteiramente na literatura.

 

TL: Em “O Filho Eterno”, você transforma em ficção algumas de suas mais íntimas experiências pessoais. Qual o limiar entre ficção e autoficção para que uma obra não se torne biográfica – ou autobiográfica?

 

CT: Não sei. É uma pergunta que às vezes me faço, olhando para trás. O conceito de autoficção, embora venha lá dos anos 70, ainda na esteira formal estruturalista, como se fosse uma “gramática” de texto, só se popularizou de fato como ideia – na verdade, puramente temática – com a vitória final da internet na vida das pessoas, a ética da exposição permanente e do fim da privacidade como valor positivo. Isso invadiu a literatura e, para explicar o fenômeno dos blogs lítero-pessoais, reapareceu espetacularmente o conceito de “autoficção”, que no senso comum serve afinal para qualquer coisa, desde que haja elementos autobiográficos numa obra de ficção. No meu caso, a estrutura romanesca de “O Filho Eterno” surgiu para resolver um problema literário individual: dar conta de um tema estritamente pessoal, ainda quase que em tempo real, mantendo a distância reflexiva que é a alma da ficção. Para isso, apenas fiz o que a literatura faz sempre: criei um narrador. Escrever ficção é criar um narrador. Já na primeira página aquele “pai” é um personagem. Se os fatos têm a ver com a vida pessoal ou não, isso é, ao fim das contas, irrelevante para o leitor. Já nas obras que se definem objetivamente como biográficas ou autobiográficas há um pacto de verdade factual com o leitor, um pacto crucial, presente da primeira à última página, e que inexiste na ficção. É a fronteira nítida que eu estabeleço quando escrevo.

 

TL: Na sua opinião, qual o legado que “O Filho Eterno” deixa a leitores e leitoras acerca das relações familiares e, mais especificamente, acerca da paternidade e da maternidade?

 

CT: Não tenho ideia. É difícil avaliar o impacto que uma obra literária terá na cabeça dos leitores. Relações familiares, paternidade e maternidade são elementos incrivelmente multifacetados na vida das pessoas; aliás, é difícil encontrar alguma obra literária que de alguma forma não fale disso desde Homero. A família é um tema literário absoluto; de fato, só a literatura consegue dar conta dele sem datá-lo.

 

TL: Em seu romance mais recente, “Beatriz e o Poeta”, você retoma a personagem Beatriz, que já havia figurado em duas outras obras – “Um Erro Emocional” e “A Tradutora”. Por que essa opção? 

 

CT: Vão aqui três fontes mais ou menos aleatórias da Beatriz, que devem ter algum fundo de verdade. Primeiro, a paixão que sempre senti por escritores que fazem concorrência ao Registro Civil, como se dizia de [Honoré de] Balzac – escritores que fazem os mesmos personagens circularem por vários livros. [William] Faulkner é outro exemplo. Segundo, minha atração – talvez inveja – quase infantil por detetives, herança das minhas leituras de [sir Arthur] Conan Doyle e, mais tarde, de [Georges] Simenon. Sempre vi o autor de livros policiais como um privilegiado que conta com um personagem completo para todos os seus livros; ele só precisa inventar uma trama e figuras secundárias, porque Sherlock Holmes [personagem de sir Conan Doyle] ou Maigret [Comissário Maigret, personagem de Georges Simenon] ou Miss Marple [personagem de Agatha Christie] ou Philip Marlowe [personagem de Raymond Chandler] já estão prontos. Beatriz surgiu por acaso, inicialmente personagem de contos – começou como “Alice”, uma jovem que dava aulas particulares de português, exatamente como eu quando estudante de Letras –, numa estrutura simples que se repetia, variando apenas a situação. De repente, o que era para ser apenas um conto de cinco páginas virou um romance – “Um Erro Emocional” –, Alice virou Beatriz, e súbito passei a ver a personagem como uma espécie de coringa para temáticas contemporâneas – a Copa do Mundo no Brasil, em “A Tradutora”, a pandemia em “Beatriz e o Poeta” –, com toques de alter ego: alguém que partilha minha condição social e cultural (classe média branca letrada), geografia (é curitibana), alguns dos meus pontos de vista (não todos), traços de temperamento (não todos) e inquietações; e o fato de ser uma personagem mulher me deslocou completamente da zona de conforto pessoal, o que é fundamental na literatura: ver o mundo pelos olhos dos outros.

 

TL: “Beatriz e o Poeta” também levanta questões importantes acerca de temas sociopolíticos, tendo como contexto o período da pandemia. Numa determinada passagem da obra, lemos que a mamata da inteligência acabou e que entramos na Era do Imbecil, e ele está armado. O que o cidadão Cristovão Tezza pensa sobre essas afirmações?

 

CT: Como todo personagem, Beatriz é um pouco uma pipeta de laboratório existencial, em que se injetam variáveis – de cultura, sentimentos, opiniões, etc. O resultado, se bem sucedido, nunca será um panfleto unilateral, mas um ponto de encontro reflexivo de visões contrastantes. A expressão citada é do editor Chaves [personagem da obra], relembrado num momento por Beatriz. Vai o trecho no contexto: “A mamata da inteligência acabou, disse-lhe Chaves na última conversa. Entramos na Era do Imbecil, e ele está armado, e sem rir quedaram-se num instante vazio de contemplação do tempo presente, o tempo estagnado e assustador.” Veja-se que o pano de fundo é o pior momento da pandemia, e no Brasil vive-se sob a atmosfera bolsonarista. Assim, a ironia de Chaves reflete, via memória da Beatriz – porque é ela que relembra – uma percepção do Brasil num instantâneo. Nesse caso, embora Chaves não me seja exatamente uma personagem simpático, eu assinaria embaixo.

 

TL: O pai do jovem poeta protagonista da obra, um jornalista bem-sucedido que ganhou na loteria, em dado momento ironiza a carreira escolhida pelo filho, afirmando que poesia é tipicamente coisa de pobre. Levando em conta não apenas a poesia, mas também a prosa, por que é tão difícil viver da escrita no Brasil?

 

CT: Se a gente pensa em séculos, e não em décadas – ou em meses, na miopia contemporânea –, a literatura é uma rainha destronada que ainda conserva alguma dignidade. Da linguagem onipresente que renasceu fortíssima a partir de [Miguel de] Cervantes e praticamente tomou conta do mundo ocidental até a virada do século 20 – todas as questões relevantes da leitura do mundo, da mais abstrata filosofia até o realismo jornalístico mais imediato passavam pela arena da ficção – resta um certo espectro em busca de um novo lugar de relevância. O fato é que esta relevância, hoje, só será propriamente intelectual – talvez uma ética, um reencontro entre filosofia e literatura –, porque os meios audiovisuais, com impressionante competência, sequestraram o que em grande medida fez a glória da literatura dos últimos duzentos anos. Afinal, todo o modus vivendi determinado pela digitalização do mundo parece conspirar contra o silêncio e a solidão fundamentais da realização literária. Mas nesse aspecto não sou pessimista: nas décadas de 1970 e seguintes era infinitamente mais difícil viver da escrita – e dos seus derivados (palestras, eventos, feiras, festas literárias, produção de roteiros) – do que hoje. A verdade é que no mundo inteiro não é fácil viver de literatura de ficção. Passei a vida dizendo que era escritor – e ouvindo a pergunta: e na vida real, você faz o quê?

 

TL: Em outra passagem do livro, esse mesmo jornalista afirma que a literatura acabou e que hoje só existe realismo socialista identitário, produzido por pessoas de boa índole para disseminar a palavra do Bem. Como escritoras e escritores podem evitar a armadilha da escrita de uma literatura panfletária?

 

CT: O personagem jornalista aqui dá vazão, de modo caricatural, a um certo ressentimento crítico contemporâneo diante do apagamento dos estudos literários em favor de urgências político-identitárias. Nessa urgência, a literatura se mede pelo seu padrão de ocupação. A ironia sobre a “palavra do Bem” lembra a mesma compulsão bíblica que vem sendo o espírito do tempo, a palavra contemporânea entendida como veículo literal e moral da verdade. Nada pode ser mais avesso à natureza ambivalente da solidão literária.

 

TL: Outra passagem do livro que chama a atenção é quando o personagem Xaveste, um intelectual catalão, fala que, hoje, a vulgaridade é uma ética, que falar mal dela, ou lhe torcer o nariz, tem o mesmo sentido anacrônico, inútil, impotente, de reclamar do advento da internet, que a vulgaridade tornou-se um valor positivo e que ela triunfa sobre tudo e todos. Qual a sua opinião pessoal a respeito desse tema?

 

CT: Há um ranço aristocrático na queixa do Xaveste, é verdade, que se vê em toda parte pela (às vezes incômoda) disseminação do valor igualitário como uma régua que se aplica a tudo, numa supressão universal de hierarquias. Mas concordo com ele que o velho conceito elitista de “vulgaridade” tornou-se, como que por vingança histórica, uma expressão de valor ético. Não sei dizer; eis um tópico que talvez merecesse um mergulho acadêmico. Tudo que está em toda parte, todo o tempo, como a vulgaridade contemporânea, acaba por ganhar um valor positivo no senso geral.

 

TL: Há outros trechos de “Beatriz e o Poeta” que fazem ponderações quase sociológicas e antropológicas acerca do comportamento humano nesta segunda década do século XXI. Uma delas diz respeito às redes sociais. O pai do poeta o aconselha a sair de todas as redes e a desaparecer da vida pública. Segundo a personagem, hoje a verdadeira revolução se faz pelo silêncio e pela ausência, ninguém aguenta mais tanta presença e tanto barulho. O que você pensa sobre a superexposição na vida real?

 

CT: Aqui é preciso separar um pouco o personagem da natureza do que ele diz; o pai do poeta, certamente um bom jornalista, tem o dom esmagador – mas também simplificador – da ironia. Quando ele diz “ninguém aguenta” está querendo dizer “eu não aguento”, porque o resto do mundo parece perfeitamente feliz e satisfeito com a barulheira. Mas que há uma crescente percepção no mundo de que as redes sociais são uma porta do inferno, não tenho dúvida. A rapidez fulminante com que elas ocuparam a vida cotidiana das pessoas é impressionante. O grau de incivilidade nas relações pessoais aumentou exponencialmente, porque a comunicação via celular – e mais ainda as coletivas e impessoais – suprime a aura afetiva implícita nas relações presenciais. Pessoalmente, por ser uma pessoa antiga, não uso redes sociais. Mas também sei que elas são inexoráveis; só a educação pode nos salvar delas, ou pelo menos lhes dar uma utilidade. O que me deixa pessimista, porque não acredito em milagre – a educação brasileira (em particular pela tragédia do ensino médio público) é muito ruim. A sensação é a de que vivo num país que não quer se educar, que não tem o menor interesse nisso. 

 

TL: Sem as palavras, o mundo é um cemitério gelado, silencioso e incompreensível de coisas, um volume opaco, um amontoado de objetos composto unicamente de realidade. Esta é mais uma passagem marcante de “Beatriz e o Poeta”, agora falando sobre a força da linguagem, chamada, neste mesmo trecho, de o verdadeiro ser. De que maneira a linguagem pode contribuir para a construção de uma nova realidade global – ou, por outra, de um ser humano melhor?


CT: É engraçado, mas eu sinto a mim mesmo ainda como um iluminista residual. Obviamente, não em defesa da razão fundamentalista que criou o Terror, mas da que formulou e conformou a utopia da condição humana universal e a possibilidade política da sobrevivência comum pela dessacralização dos poderes. E a palavra – a linguagem de que somos feitos, aquilo que nos define – está no centro desta possibilidade. Percepções transcendentes, religiosas, messiânicas ou irracionais da realidade, quando saem estritamente da experiência pessoal e se revestem de poder coletivo, são sempre politicamente trágicas.

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