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Opinião

Miró se foi: “os vivos quando voltam de um enterro voltam mortos”

Por: SIDNEY NICÉAS
Mudamos a pauta do blog hoje diante do falecimento do inesquecível Miró. A dor de viver também nos aflige.

Foto: Sidney Nicéas

31/07/2022
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*por Sidney Nicéas

Escrevo estas palavras com um nó nas tripas. Meu poetamigo Miró faleceu hoje (domingo, 31), vitimado pelo câncer. Ele era exemplo vivo do poder da Literatura. Nascido e criado no bairro da Muribeca, em Jaboatão dos Guararapes, Região Metropolitana do Recife, João Flávio Cordeiro da Silva poderia ter se tornado traficante, matador, ladrão como alguns de seus amigos de infância. Foi a poesia que salvou Miró (ele mesmo afirmava isso); salvou da bandidagem, mas não do drama que é viver.

 

Jogou fora os espelhos da casa

foi embora sem saber da sua cara

deixando para trás a lembrança

dele mesmo

 

ele era apenas seu casaco vermelho

sua bermuda

R$ 10,00

e a certeza de que nem tudo se compra

nesse mundo

(Se Olhar é Preciso, Viver Não é Preciso)

 

Conheci Miró nas minhas andanças literárias, nem lembro há quanto tempo. Era impossível não rir com as brincadeiras recíprocas, nem se sensibilizar com sua luta contra o alcoolismo. Na Bienal de Pernambuco, em 2017, Miró apareceu cheio de dentes, vários amigos bancaram uma prótese para ajudá-lo e ele me confessou, baixinho, “Vou tirar essa porra dos meus dentes, Sidney, incomoda demais! Vou terminar cuspindo essa chapa quando tiver declamando!”. Não cuspiu a dentadura naquela ocasião, mas apareceu no dia seguinte com a boca desfalcada. Esse era Miró, autêntico, sem frescura.

 

pais ensinam aos filhos

que velhos maltrapilhos

são papa-figos

que mastrubação faz mal à saúde

e que não é muito bom

ficar no sereno

 

filhos ensinam aos pais

que aproveitem a vida

pois o mundo vai se acabar no 

ano 2000

  é mentira

      que

  só

      a

          porra

(Primeiro de Abril)

 

A última vez que vi Miró foi há quase um ano, em agosto de 2021. Queria lhe dar um abraço (fazia uns tempos que não o via) e aproveitar para entrevistá-lo para o Tesão Literário. As mudanças dos seus números de celulares dificultava bastante o contato e sempre acompanhei a luta dele pela saúde, já que integro um grupo de whatsapp voltado para arrecadar fundos para seus tratamentos e, também, atualizar das notícias sobre ele. Tinha uma urgência pela vida. “Viver é não antecipar a morte. Eu antecipei a minha”, disse pra mim e esta frase integrou a matéria (https://www.veragora.com.br/tesaoliterario/artigo/miro-no-tesao-nao-quero-deixar-o-quintal-de-deus-agora). A notícia da sua partida me partiu ao meio.

 

agora

agouras meu destino

desejando lá no fundo

que minha vida seja rasa

de que me falte ar

na hora do mergulho

 

e lembrar que

gostávamos tanto

de ir à praia

(Separação)

 

Noutro trecho da matéria, uma frase de Miró acabou virando o título: “Não quero deixar o quintal de Deus agora”. O poeta sabia que viver não tinha nada de romântico e que poesia serve também para dar socos no nosso estômago.

 

faz sol em São Bento do Una

se tivesse chovendo nada mudaria

talvez regaria as flores

que o dono da funerária festeja

mais um pouco de grana na sua conta bancária

e elegante

minha mãe dorme sem saber de nada

(16 de Janeiro de 2012)

 

Difícil “perder” Miró, o amigo, o poeta. Vou parar de escrever para me arrumar, ir ao seu velório (um símbolo da despedida), sabendo que voltarei tal qual ele um dia escreveu num de seus poemas sem título; ele escreveu para mim, para nós.

 

os vivos quando voltam de um enterro

voltam mortos

 

num sol desgraçado

em uma falta d'água

que regue a última semente

 

os mortos nada sabem

sem ciúmes, livros e contas a pagar

os vivos pensam até

que Deus lhes dará conforto

 

o morto dispensa qualquer comentário

pois sabe: o que o acompanha

são flores

o monte de terra

e talvez lembranças de fatos corriqueiros

de uma breve passagem

num quintal de Deus

 

os vivos quando voltam de um enterro

voltam mortos

 

Antes de ir, mais uma lembrança: dia desses Miró me contou que chegou a vender livros num cemitério, durante um velório - havia ido se despedir de um amigo falecido e, como sempre andava com livros na bolsa, alguém pediu pra comprar e ele não perdeu a oportunidade. Desta vez Miró é o livro. E vou até a carcaça que sobrou para dizer à sua alma, eterna: o quintal de Deus fica mais pobre sem você, amigo. Adeus. Até breve, poeta…

 

--

*Hoje publicaríamos uma matéria sobre a Biblioteca Popular do Coque, no Recife, exemplo na inclusão social pela literatura, mas o falecimento do poetamigo Miró mudou nossa programação (publicaremos a matéria da BPC no domingo que vem).

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